Terça-feira, dia 03 de Maio de 2016 oito horas da noite, me encontro deitado em uma maca de um pronto atendimento ortopédico tomando soro com Tramal e Profenid na veia, após passar pelo ortopedista por não estar conseguindo caminhar devido a uma contratura muscular que já estava me acompanhando há duas semanas, e que ganhei por conta de outra lesão no pé esquerdo, feita durante os treinos de subida.
Naquele momento, com minha cabeça que já estava fragilizada devido aos treinos de corrida perdidos as vésperas do meu desafio do Endurance 60k do XTerra Brazil em Ilhabela/SP, começo a pensar na possibilidade de não conseguir realizar a prova.
Foram 4 meses de muita preparação, com acompanhamento do meu coach de Corrida João Perotti, do meu preparador físico Éden Carlos, meu endocrinologista Dr. Ronaldo Arkader, meu nutricionista Diego Nadalon, meu fisioterapeuta Guilherme Ribeiro e, é claro, a minha companheira e psicóloga nas horas mais difíceis, a minha SUPER esposa Luciana.
Chega o tão sonhado dia! Acordo disposto e por incrível que pareça, na perna somente um leve incômodo, sinto a perna esquerda, que não era a lesionada, bem cansada, mas nada preocupante. Afinal, ela aguentou firmemente a compensação da outra lesionada.
Devidamente “montado” com os 5kg da parafernalha que temos que levar, como kit primeiros socorros, com todos itens e suas quantidades e medidas obrigatórias que são solicitadas pela organização da prova, mais toda a água, suplementação e comida para aguentar os 60km de subidas e decidas em terreno irregular.
Chego ao local da largada. Lá encontramos com meu cunhado, que também é o meu coach de corrida João Perotti, e que também iria participar do XTerra, mas no triathlon, e sua namorada Bruna.
Me posiciono no curral de largada junto aos outros loucos, ops desculpa, atletas, que como eu, é notável a tensão e ansiedade para dar inicio a um desafio sobre-humano e tão esperado.
A contagem dos minutos finais é feita pelo locutor, então faltando um minuto para a largada, o locutor pede a música, que já é um hino das largadas do XTerra, a Highway To Hell do AC/DC, que não poderia ter uma letra que combinasse tanto..rs
Então a buzina toca e cerca de 80 atletas partem calmamente em um trote leve para aquecer a musculatura, pois estávamos somente dando início a prova mais dura das etapas de endurance do XTerra. Eu largo bem, apesar de perceber estar mancando, por conta da musculatura ainda fragilizada e fria.
Logo de cara, ainda dentro da cidade, nos deparamos com 2km de uma subida super inclinada, todos desaceleram e a corrida leve vira uma procissão morro acima.
Terminada essa primeira subida, voltamos a um ritmo leve e eu monitorando a perna, já consigo melhorar a passada, pois a subida serviu como um belo aquecimento.
Dali em diante, passamos por uma série de subidas e descidas em paralelepípedos , estradinhas de terra e trilhas mais fechadas, mais conhecidas como Singletracks.
Por volta de 5 km, em uma dessas singletracks, descendo e desenvolvendo uma boa velocidade, a mata estava mais fechada, o que acabava abafando mais o clima e a umidade fazia com que as minhas lentes de contato embaçassem e acabei batendo meu ombro em cheio num galho, pronto ganhei meu primeiro presente da prova, um belo arranhão...kkkkkkkkkk
Ali, uma moça muito simpática que estava correndo próxima a mim, prontamente me parou e perguntou se precisava de ajuda com o machucado, mas como vi que era somente um arranhão, agradeci e continuamos nossa aventura.
Uns 2 quilômetros a frente começo a sentir o tênis pegar bem no meu joanete, (presente genético por parte de pai e mãe..rs), inacreditável, nos treinos o tênis se comportou legal ai resolve pegar justo na prova, então resolvi parar e passar um esparadrapo, antes que piorasse. Sentei-me na guia, tirei a mochila, tirei toda a suplementação e comida para ter acesso ao kit de primeiros socorros que estava bem no fundo da mochila, pois esperava realmente não precisar.
Novamente a moça se aproxima e me pergunta se preciso de algo ou se eu queria um daqueles curativos da Nexcare. Vejo que com esparadrapo parecia ter resolvido o problema, agradeço, e bora continuar!
Lá pelo quilometro 15, encontro novamente com a moça e começamos correr lado a lado e ir batendo papo. Essa é uma ótima dica que muitos ultramaratonistas experientes dão: arrume uma companhia para tornar a corrida menos estressante psicologicamente falando.
Noto que ela olha muito pra mim com uma cara de dúvida, e de repente ela pergunta se eu sou o Ramon (NadaPedalaCorre), digo que sim e ela grita e diz que eu não faço a menor ideia do quanto eu a motivei e a ajudei a se preparar para estar ali. Ela me seguia em minhas redes sociais e assistiu a todos os meus vídeos, pegando as dicas que eu passava sempre que possível.
Aquilo foi realmente incrível, saber que mesmo não sendo um profissional, foi possível ajudar a motivar e, de alguma forma, dividir as minas experiências, de forma que a ajudasse a estar mais preparada para aquele desafio.
Seguimos, a partir dali juntos, trocando historias e descubro que ela (Karina Bozoli) tinha uma história linda de superação. Ela teve câncer de mama há um ano, venceu a doença e estava ali fazendo uma prova duríssima com uma disposição e um sorriso sem igual! Exemplo de superação e vontade de viver intensamente que nunca vi.
Com essa pessoa iluminada ao meu lado, fomos vencendo quilometro por quilometro de subidas e descidas, estradas e trilhas extremamente técnicas rumo a metade do percurso, a tão esperada praia de Castelhanos.
Nesse meio tempo, sinto cada vez mais o meu joanete incomodar e percebo que, mesmo com todo o esparadrapo que passei, já estava se formando uma bolha no local. A cada quilometro percorrido a dor piorava. Começo a pensar comigo: Putz não acredito que a perna lesionada está bem e vou ter que desistir da prova por conta de uma bolha no pé! Inacreditável, né?!
Comento com a Karina sobre a dor que estava sentindo e estava aumentando muito, ela prontamente para, tira a mochila e pega, aqueles Nexcare que comentei aqui acima, que ela havia me oferecido e me entrega. Desta vez aceitei, pois vi que passar esparadrapo não estava mais adiantando. Como ainda estava conseguindo correr e estava receioso de tirar o esparadrapo e arrancar toda a pele e piorar a situação, resolvi seguir até Castelhanos, onde havia um posto médico e onde poderiam dar um suporte maior no tratamento do machucado.
Voltamos a correr e, um pouco mais a frente, encontramos um senhor caminhando, meio mancando, mas seguindo em frente. Passamos por ele e o chamamos para seguir conosco num trote leve, ele olha sorri, mas continua na sua caminhada.
Mas a frente, percebemos águem se aproximando, era o senhor que havíamos passado e que já estava desenvolvendo uma corridinha onde nos alcançou e acabou puxando assunto. Mal sabíamos que ali se formava um trio, e que faríamos toda a diferença na motivação e apoio uns para os outros.
O nome deste senhor é Roberto Tabata, um Ultramaratonista já com sua experiência em provas de Trail Run e que estava ali usando a prova como treino para outra ultramaratona, mas essa seria de 100 km. É isso mesmo, 100 km. E quer saber mais? Ele estava ali mancando, por estar se recuperando de um pé quebrado ha poucos dias. E tem gente que achava que eu era louco e viciado em corridas......kkkkkkkkkkk.
Com esse “Trio parada dura” formado, continuamos rumo a Castelhanos. Faltando mais ou menos uns 3 ou 4 quilômetros para chegar a praia, vieram em nossa direção 2 garotinhos, que não deviam ter mais que 7 anos de idade, descalços em meio a uma estrada de terra cheia de cascalho e pedras soltas, começaram a correr e nos acompanhar. Conversando com eles descobrimos que eram moradores da vila de pescadores da praia de Castelhanos e que iriam nos acompanhar até o posto de controle instalado lá.
Faltando cerca de 1 quilômetro, nos deparamos com uma cachoeira linda e
que teríamos de atravessar pelas águas. Sim havia uma ponte, mas era proibida pela organização de ser utilizada. Sem problemas, já sabíamos que haveria esse tipo de “obstáculo” e fomos com tudo pra dentro.
Ali, sinto uma dor alucinante no meu pé, exatamente aonde percebi que estava se formando a bolha. Vi que a mesma deveria ter estourado e estava em carne viva, que em contato com a água, ardeu até a alma.
Como já estávamos na água e a mesma estava bem gelada, resolvemos aproveitar e deitar para que o gelo da água desse um alívio nas pernas já bem cansadas do percurso extremamente duro e que ali ainda estávamos chegando na metade.
Energia reposta, continuamos com a “escolta” dos nossos amiguinhos rumo a praia. Passamos por mais uma cachoeira, igualmente linda e gelada, e depois de mais uns 800 metros, eis que surge a tão esperada praia de Castelhanos.
Seguimos então por uma mistura de areia fofa e dura, com peixes suicidas pulando da água para a areia e os garotinhos pegando e devolvendo para o mar: situações que só uma prova de Trail Run pode proporcionar...rs.
Passamos por mais um riozinho que desemboca no mar e após mais uns 700 metros chegamos ao posto de hidratação e atendimento médico.
Ali nos refrescamos, tomamos a tão esperada Coca Cola, junto com os nosso “amiguinhos” locais, e eu vou até o atendimento médico para resolver o meu ferimento no pé.
Assim que as enfermeiras tiram a minha meia, percebo que eu estava com duas bolhas já estouradas na região que estava doendo. Então elas fazem toda a assepsia no local e cortam com um bisturi a pele morta em volta. Para proteger e cobrir os ferimentos, elas queriam colocar curativos feitos com gaze, o que poderia causar um atrito pior do que só um esparadrapo, então prontamente a Karina tira mais dois dos curativos da Nexcare que ela já havia me oferecido e deixado um comigo, para que as enfermeiras pudessem fazer o curativo com eles. Ficou ótimo!
Aproveitei e troquei minhas meias encharcadas, por meias secas que eu havia levado de reserva, já prevendo um acontecimento como este, pois é comum acontecer e até recomendado que se leve meias reserva em trilhas onde há travessias por águas.
Curativos feitos, partimos para a nossa segunda metade do percurso e em busca da nossa primeira meta que era chegar no posto de corte dentro das 7 horas limite.
Ali deixamos nossos companheiros mirins e é dado início a uma subida sem fim, em meio a estradas e trilhas super íngremes com mata fechada. Ah, nem preciso dizer que a pouco mais de um quilometro passamos por uma cascata e que molhei novamente os pés que já estavam sequinhos com as meias reservas.....kkkkkkkkkkkkk. Tudo bem! Faz parte do pacote!
Por volta de 38 quilômetros percorridos, minha perna direita, aquela que não estava lesionada, mas já havia acordado sentindo ela cansada, começou a dar sinais de câimbra na coxa, mais precisamente no quadríceps. Não demorou muito para ela começar a trava sempre que eu conseguia desenvolver uma corrida leve em pontos mais planos. Pra ajudar, noto que nosso tempo estava ficando muito curto para conseguir chegar no ponto de corte antes do tempo limite.
Ali começou a bater um certo desespero, principalmente em mim e na Karina, o seu Roberto não estava abalado com a situação, pra ele, como a prova era mais para treino e ele já era um ultramaratonista, não havia muito importância pegar a medalha. Eu comecei a me contentar com a ideia de ter que entregar o chip no posto de controle por não conseguir chegar no corte a tempo, mas continuar correndo o percurso para que pelo menos esse título não me fosse tirado. Depois de tudo que eu havia passado, eu seria um ultramaratonista, com ou sem certificado!!
Nisso minha perna já não deixa mais eu nem caminhar! Paro e digo aos dois que continuassem sem mim, que eu ficaria ali tentando me alongar e aquecer para que, se melhorasse, voltasse a correr e alcança-los.
A Karina então dispara, pois ela estava obstinada a conseguir essa medalha para oferecer ao pai, que passa por problemas de saúde.
Seu Roberto também continua, mas não conseguiu acompanhar o ritmo da Karina.
Fico ali então alongando e tentando melhorar a dor alucinante que estava sentindo na coxa. Entre alongamentos, pequenas caminhadas, gel, bananinhas e chips de batata doce, a perna começa a dar um alívio e consigo voltar a trotar e transformar esse trote em um ritmo que nas descidas chegavam a 4:30min/Km. A cabeça voltou ao foco, e quando percebi, já havia alcançado o seu Roberto, que mesmo mancando e com dores nas pernas, continuou no ritmo dele logo atrás de mim. Mas a frente no alto de uma subida, vejo que a Karina estava indo firme e forte, dou um grito e ela se vira, nessa hora ela demonstra uma felicidade tão grande em nos ver, que subi morro acima como se nada tivesse acontecido! Ali entendo mais ainda aquela dica que comentei aqui, sobre arrumarmos parceiros durante a prova para seguir juntos.
Corremos juntos então, ai já com um percurso em estrada de cascalho e que em sua maioria já era uma descida.
Todo aquele esforço acabou sendo recompensado, pois chegamos exatamente no limite do tempo de corte no quilômetro 45. Ali encontramos companheiros de prova que haviam desistido, por dores musculares, machucados e até por falta de um melhor preparo psicológico, pois simplesmente desistiram.
Este ponto ficava exatamente na entrada de uma trilha, pesada, mas que começa a nos mostrar um visual da ilha sem igual.
Pouco mais a frente, paramos em uma cachoeira para dar uma relaxada e comemorar entre nós e avisar os familiares que havíamos conseguido superar a barreira dos 45 dentro do tempo limite de prova. Eu, como um usuário de redes sociais, não poderia deixar de levar meu celular, para poder registrar tudo via meu snapchat e também para depois editar um vídeo com todas as imagens captadas seja pelo celular, como também com a minha Gopro. Então aproveitei para ligar para minha esposa e dar a feliz notícia de que eu ainda estava no jogo...rs.
Felicidade compartilhada e comemorada, continuamos na nossa saga, mas agora com mais fôlego e tempo para completar o restante, afinal ainda eram 14h e tínhamos até as 18:30 para percorrer os 15 quilômetros restantes.
Pouco mais a frente, ganhamos a companhia da moto da organização, com dois Staffs que nos acompanhariam pelo percurso até a conclusão, já que fomos os últimos a conseguir passar pelo controle dos 45 em 7h. Quem veio atrás estava automaticamente desclassificado.
Então, novamente escoltados...rs, seguimos em frente.
Em meio a paisagens lindas e trilhas desafiadoras, com muito sobe e desce novamente, começamos a perceber que, por conta da dificuldade do percurso, nosso tempo começou a ficar curto novamente, nada muito desesperador, mas combinamos de tentar dar uma acelerada na parte asfaltada. Já próximo da cidade, noto que estamos passando por um caminho que eu conhecia, pois já participo das provas menores do XTerra desde 2011. Ali conseguimos então traçar melhor nossa estratégia de ritmo, monitorando o horário.
Chegando no quilômetro 55, nos deparamos com um colega de prova deitado, literalmente esgotado. Tentamos animá-lo e trazê-lo conosco, mas ele pediu que a moto de apoio, que nos acompanhava, chamasse o carro resgate, pois ele não daria mais um passo.
Passamos por mais um tapete de controle eletrônico e entramos nos últimos 3 quilômetros de prova. O tempo está mais curto, então, começamos a alternar corridinhas e caminhadas, pois não temos mais condições de correr direto.
E assim neste ritmo, chegamos a praia do Perequê, onde acontece o evento.
Com uma mistura de dor, felicidade e choro, seguimos os três firmes até o tão aguardado pórtico de chegada. Lá nos deparamos com nossos familiares já em êxtase gritando e nos motivando nesses metros finais. Eu desabo em lágrimas e agarro minha esposa para seguir comigo até o pórtico. A felicidade fica mais completa ainda, pois minha mãe, as vésperas do dia das mães, estava lá também para presenciar mais essa conquista tão significante na minha vida esportiva.
Podemos passar inúmeras dificuldades, e ter de batalhar muito para alcançar certos objetivos e, ainda assim, morrermos na praia.
Podemos nos deixar consumir pelo trabalho, e perder noites de sono ou deixar de passar finais de semana com a família apenas por que temos extrema necessidade de conseguir recursos para mantermos uma vida digna, ou amargarmos um período obscuro de desemprego.
Podemos assistir a injustiça bater à nossa porta e perceber, infelizmente, que em algumas ocasiões não há absolutamente nada a fazer.
Podemos chorar com o coração partido a perda de um ente querido.
Podemos, por tanta coisa negativa que aconteça, julgarmos que tudo sempre dar errado conosco e maldizermos nossa sorte.
Depois de tudo isto até podemos deixar passar pela cabeça a estúpida ideia de fazer uma grande besteira consigo mesmo, desde que seja exatamente assim: que tal idéia passe – e nunca mais volte, por que a Vida, assim como é no esporte, a vida é Superação!
Nós não nascemos andando, não nascemos falando, nem pensando tanta bobagem, e o que não podemos em hipótese alguma é perdermos o ânimo, o espírito, e nossa capacidade de auto-superação.
Pratique um esporte, arrisque, busque novos desafios, supere-se e aprenda que você é capaz de qualquer coisa, basta querer e correr atrás!
Dedico essa prova a minha esposa, pois sem o apoio incondicional dela nada disso seria possível, e dedico também aos meus companheiros Karina, Sr. Roberto e a todos aqueles que de alguma forma, seja através de mensagens, palavras e até mesmo em pensamento me mandaram energias positivas e que fizeram toda a diferença nessa coquista.
Muito obrigado!
Aos que torceram contra, me desculpem, mas vão ter que conviver com a minha conquista. Pois agora meu amigo(a), agora eu também sou ULTRAMARATONISTA.